Amor. Morte?
Sexo!
Jean Caetano
Oswaldo é um médico nos
idos dos seus 67 anos, tem
um consultório na Avenida
Nossa Senhora de Copacabana. Costuma dizer que só
tem um vício,
que é tomar seu Chopp todo final de tarde no Sindicato
do Chopp que fica na Avenida
Atlântica, no posto 6. Faz isso desde os seus 20 anos,
aliás, foi lá que conheceu
aquele que se tornaria
seu melhor e fiel amigo, foi amizade à primeira vista. Oswaldo saiu do
Sindicato, atravessou a Avenida Atlântica e foi pitar seu cigarro bem
próximo ao mar,
ali ao lado do Botequim
Carioca. De repente,
se aproximou dele um sujeito
com roupa social, calça azul-claro,
camisa e paletó brancos com os pés descalços.Jorge se aproximou de Oswaldo.
– O doutor pode me arranjar um cigarro por obséquio?!
– Por obséquio? – perguntou Oswaldo assustado e
complementou – Quem lhe disse que sou doutor, camarada?!
– Se não é, finge ser, pois este anel no seu dedo é de médico – responde Jorge.
– Ah! Meu anel. Mas você é observador hein?! –
disse Oswaldo. Em seguida deu uma boa tragada no seu cigarro,
tirou o maço de cigarros do bolso, pegou um para Jorge e
lhe passou o isqueiro.
– Agradecido, doutor – disse Jorge, já acendendo
o cigarro.
– Muito prazer,
sou Oswaldo. Sou doutor sim, mas me chame só pelo meu nome. Tem muita
gente por aí que nem doutor é e usa o título
–
disse.
Continuou fumando.– Pois tá certo. Muito obrigado, Oswaldo. Eu sou
Jorge, não tenho título nenhum, na
verdade nem casa eu tenho.
– Você me parece um cidadão de bem. Como assim
não tem casa? – perguntou Oswaldo intrigado.
Jorge deu uma boa tragada no
cigarro, olhou para o mar azul a sua frente, voltou-se para Oswaldo e disse:
– Sabe, Oswaldo, eu já tive muitas coisas, casa,
carro, era um comerciante em Niterói, mas aí, resolvi vender tudo e gastar até
o último tostão.
Oswaldo ficou paralisado por alguns
segundos após ouvir isso.
– Mas gastar tudo por que, Jorge?!
Jorge coçou a barba, tragou mais
uma vez, olhou para o mar novamente.
– Oswaldo, depois que três bandidos invadiram
minha casa, mataram minha esposa e meu filho porque eu não estava com a grana
lá pra eles, jurei a mim mesmo que nunca mais teria um centavo para ser
assaltado.
Oswaldo ficou sem saber o que
dizer, deu alguns passos em direção ao mar, tragou novamente, depois voltou,
pôs a mão no ombro de Jorge.
– E hoje onde você mora?
Jorge sorriu, tragou o cigarro,
abriu os braços e gritou:
– Em Copacabanaaaaaa, na cidade do Rio de
Janeiroooooooo! Jorge morava nas ruas, embaixo das marquises dos prédios da
Av. Nossa Senhora
de Copacabana, seu lugar preferido era em frente à Galeria Atlântica, mas nunca
perturbou ninguém.
Oswaldo riu, abraçou-o, em seguida
convidou o novo amigo para acompanhá-lo até o Sindicato do Chopp e juntos tomaram
várias canecas na varanda
admirando as maravilhas que por ali passavam. Des- cobriram que eram quase
vizinhos; apesar da distância, o consultório ficava na mesma avenida próximo ao
posto 3.
Oswaldo ficou viúvo há 8 anos, não tem filhos, decidiu
ficar soltei- ro pelo resto de sua vida, e assim aproveitar cada minuto com as mais belas mulheres. Jorge brincava
falando que o amigo parecia que não tinha tido juventude e ele afirmava que era
verdade, pois se dedicou muito aos estudos, esquecendo-se de viver o lado bom
da vida.
A farra de Oswaldo durou pouco mais
de um ano, ele conheceu a jovem, bela e
doce Aury. Quando Oswaldo a viu no Calçadão, sentiu algo indescritível, que nem
ele mesmo sabia explicar o que era aquilo, mas
sabia que a partir dali só queria
aquela mulher. Não perdeu tempo e,
mesmo sabendo que ela era garota de programa, montou apartamento na Rua Souza
Lima para ela. O que ele não esperava era que Jackson, o cafetão dela, iria
persegui-los.Uns seis meses depois,
por volta das dez horas
da manhã do dia 9 de novembro, Oswaldo
chegou ao prédio
para visitar sua linda. Quando chegou ao apartamento, Jackson
estava com uma faca no pescoço de Aury. Oswaldo sentiu lhe faltar o chão, tentou demover
Jackson daquela loucura.
– Pare com isso rapaz, deixe a moça ser feliz –
apelou Oswaldo.
– Agora chegou quem faltava. Foi você quem tirou ela de mim. Vai morrer primeiro – vociferou Jackson.
– Rapaz, pense melhor, eu lhe pago pelo prejuízo
– argumentou Oswaldo.
– Prejuízo?! Você
não entende nada, vovô, eu amo essa mulher.
–
Por favor, Jackson não faça nada que possa se
arrepender. Aury apelou chorando.
– Me arrepender?! Não sou homem de arrependimentos, vou matar vocês dois e
depois me mato.
Ao falar isso, Jackson largou a
faca, sacou uma arma e apontou para Osvaldo. Imediatamente disparou três tiros
certeiros. Aury se desesperou, abraçou o corpo de seu amado, chorando muito.
Jackson ficou atônito, parecia não acreditar no que tinha feito.
Aury gritou:– Me
mata agora, seu desgraçado.
Ele continuou onde estava, levou a
arma até a cabeça, apertou o gatilho, caiu morto quase na varanda.
Na rua Jorge estava desesperado
tentando chamar a polícia, pois o
porteiro tinha ido lhe avisar que Jackson havia entrado a força no prédio.
Quando ele ouviu os disparos, correu para atravessar a rua a fim de ajudar o
amigo, mas foi atropelado, morrendo antes de chegar o socorro.
Meses antes, numa conversa
no Sindicato do Chopp, Oswaldo
dis- se que seria cremado após sua morte, Jorge disse que se pudesse
pagar também seria, para não ser enterrado como indigente. Oswaldo disse que no
dia seguinte iria deixar tudo pago no crematório e, para não ter problemas, caso morresse primeiro, deixaria o jornaleiro da rua responsável pelo amigo. Ambos foram cremados
no mesmo dia, as cinzas de Oswaldo seriam enviadas para
Aury e as do Jorge ficariam no crematório mesmo.
Porém, por uma confusão de um funcionário as cinzas que foram para Aury foram as do Jorge, enquanto
as do Oswaldo ficaram lá.Ela recebeu a urna, toda chorosa.
À noite vestiu sua lingerie
nova, pegou a urna, deitou-se em sua cama e começou
a acariciá-la, beijá-la. De repente o espírito de Jorge
apareceu e sentiu cada toque e beijo em uma parte
do corpo, por sorte dele ela não o via. Jorge estava
todo animado, pois nunca a tinha visto naqueles trajes e, mesmo sendo
mulher do seu melhor amigo, ela era divinal. Quando ele estava quase delirando com suas carícias eis que
o espírito de Oswaldo aparece ao seu lado e o segura pelo braço.
–
Que é
isso, meu amigo? Depois de morto vai me trair? Gritou
Oswaldo.
Jorge tomou um grande susto.
– Oswaldo, meu bom amigo, eu não tive culpa, ela que começou...
– Mas, como amigo, você devia recusar – afirmou Oswaldo.
– Não tem como, olha lá, ela não me larga.
Oswaldo olhou para Aury e ficou
dividido entre o ciúme e a com- paixão.
–
Ô, meu
Deus, que judiação com minha Aury. Vira-se para Jorge.
– Você se contenha e me respeite, somos amigos,
rapaz, e além de tudo estamos mortos, agora somos espíritos.
– É verdade! Mas já que somos espíritos não é
traição coisa nenhuma – justificou Jorge, voltando a se animar com as carícias dela.
– Não me interessa Jorge, é traição sim. Isso
quer dizer que se você estivesse vivo ia ficar com ela?
–
Está me
estranhando, Oswaldo?! Você não tá vendo que é ela quem me acaricia? Eu estou quieto, não faço nada.
Jorge tem uma reação como se fosse
sentir orgasmo, Oswaldo parte para cima dele com fúria.
–
Ahhhhh seu... seu traíra.
Tenta dar-lhe um soco, mas ele se esquiva. Oswaldo
acerta um quadro na parede,
que cai. Os dois se assustam, Aury também e dá um pulo da cama.
– O que foi isso, meu Deus?! gritou a mulher sentindo um arrepio.
– Oswaldo! Oswaldinho! Você está aí?!
Benze-se, arrependida.–
Estou
ficando louca, invocando um morto? Pega o quadro e coloca-o de volta na parede.
Oswaldo observa-a com muita ternura dizendo:
– Coitadinha de minha Linda, o que será dela sem
mim agora?
– Ué! Você não
disse que ia deixar toda grana pra ela? Oswaldo olha para Jorge, ainda com raiva.
– Você tem razão, eu tinha me esquecido. Também não estou falando só de grana.
Aury volta para a cama, pega a urna
e recomeça as carícias.
– Olha aí, Oswaldo, não vai ter jeito, não sou de
ferro – argumentou Jorge.
– Eu devia te
matar, seu traíra - disse Oswaldo, segurando no braço de Jorge.
– Mas eu já estou morto, ou melhor, nós estamos
mortos, meu caro amigo.
Oswaldo
soltou-o, coçou a cabeça “meio desesperado”. Olhou para Aury
que acariciava a urna, no momento
em que ela chamava por ele.– Pior que você tem razão. Ela tá achando que as
cinzas são as minhas.
Jorge se conteve um pouco, e disse:
– E se você fosse lá e a acariciasse?
–
Mas ela não vai sentir nada.
Espíritos não podem tocar ninguém. Jorge disse que, se ele tinha
derrubado o quadro com um soco, podia tocá-la. Muitas vezes, quando
se sente a presença de um espíriarrepiamo-nos.
Oswaldo concordou com o amigo, mas
disse para ele ficar onde estava, pois devia
respeitar sua mulher.
Em seguida deitou-se
na cama ao lado dela, começou
a acariciá-la. Para sua surpresa ela reagiu, ficando toda arrepiadinha.
Aury se divertiu a noite toda com os dois sem perceber.
Na manhã seguinte, bateu à
sua porta o rapaz do crematório, que lhe explicou o mal entendido entregando a
urna do Oswaldo. Ela devolveu a urna do Jorge, mas, quando ele ia saindo, os
espíritos de Oswaldo e Jorge apareceram.
– Você vai deixá-lo me levar mesmo, Oswaldo? –
perguntou Jorge meio tristonho.
– Ei rapaz, espere aí. Largue essa urna e dê o
fora daqui.O rapaz os viu, largou a urna num buffet que tinha ao lado e saiu
correndo. Oswaldo e Jorge riram muito. Aury ficou sem entender nada. Fechou a porta, pegou a urna, respirou fundo.
– Que cara mais esquisito, eu hein!
Em seguida, foi em direção à
varanda. Jorge ficou desesperado, disse que se ela o jogasse pela janela, ele
ia se arrebentar todo.
Oswaldo riu, dizendo que ele já
estava morto. Quando olhou para o amigo e o viu quase chorando,
disse que ia dar um jeito. Foi até Aury e sussurrou algo no seu ouvido.
Ela já estava na varanda, parou,
sentiu um vento gelado em seu rosto. Voltou para a sala, foi até um belo vaso
com um pé de comigo-
-ninguém-pode e jogou as cinzas lá mesmo. Oswaldo
riu, disse que agora
ele tinha um lar. Jorge riu também.
De repente, Oswaldo começou a se animar, pois Aury já estava acariciando a urna
do amado.
– Esse é meu castigo, ficar apenas olhando. O
inferno deve ser assim! – disse Jorge.
Oswaldo olhou para o amigo,
compadeceu-se dele e disse:
– Venha também, afinal de contas não é traição mesmo!
Publicado no livro Um Dedo de Prosa. Organização Marcio Martelli. Jundiaí/SP. Editora InHouse, 2016
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